quarta-feira, 28 de outubro de 2009

"Esfera pública, democracia, configurações pós-nacionais", (Sérgio Costa), fichamento

1. Conseqüências da globalização para expansão e aprofundamento da democracia são ambivalentes: a forma de governo atinge prestígio e legitimidade, com amplo consenso, mas a reconfiguração contemporânea do mundo impõe à democracia desafios inéditos, como a pluralização cultural e política no interior dos Estados-nação.

2. A globalização reconfigura as comunidades políticas existentes ao redefinir os laços de pertença entre membros das nações: (I) pressão homogeneizadora de uma cultura mundial global leva ao aparecimento de movimentos culturais regionais de difusão das identidades locais, estabelecendo conexões e relações com o resto do mundo; (II) movimentos migratórios do sul para o norte reconfiguram democracias maduras confrontando-as com uma pluralidade de caráter novo ou realimentando regressões nacionalistas e segregacionistas.

3. Esses movimentos são diferentes e favorecem a pluralização cultural: (I) pressões contra implementação de políticas assimilacionistas e valorização da diversidade cultural e elogio da diferença dando o tom das políticas culturais; (II) novas possibilidades de comunicação e circulação permitem contato permanente dos imigrantes com regiões de origem; (III) mobilizações sociais transnacionais e intercâmbios comunicativos entre grupos sociais de diferentes regiões do planeta, levando a condensação e difusão de novos estilos de vida e visões de mundo e o descolamento/desterritorialização das diversas formas culturais de vida de seus locais de origem.

4. Configurações pós-nacionais colocam questões para a teoria da democracia: (I) discutir em que medida a comunidade e o Estado nacionais ainda conformam os espaços discursivos privilegiados para a tematização dos assuntos de relevância comum, num contexto em que os cidadãos nacionais encontram-se inseridos, simbólica e materialmente, em teias de relações que extrapolam os limites da nação. Portanto, cabe discutir a natureza dos novos contextos comunicativos transnacionais: constituição de uma esfera pública mundial ou amálgama de redes comunicativas particulares e especializadas que não convergem para a formação de um “público mundial”? (II) esforço de transnacionalização do âmbito da ação dos movimentos sociais, com a manifestação de uma tensão entre cultura e política: redes transnacionais de atores sociais pressionam para que valores como equidade de gênero ou respeito aos direitos humanos se transformem em aspirações universais, mas reproduzem assimetria dos níveis de progresso econômico existente  difusão dos valores políticos originados nas democracias maduras e globalização de modelos concretos para emancipação social construídos nas regiões economicamente mais pujantes. Costa (2003) destaca esse dilema, tratando-o ao afirmar que o respeito aos direitos que se quer justificadamente universalizar só se materializa e ganha sentido no âmbito de formas concretas de busca de reconhecimento vigentes num determinado contexto sociocultural.

5. Costa (2003) procura discutir os processos de constituição dos espaços comunicativos transnacionais a partir da experiência da unificação européia a fim de formular teoricamente a tensão entre valores políticos abstratos que as redes de movimentos sociais buscam universalizar e as aspirações de reconhecimento dos contextos regionais e locais particulares.

6. A DINÂMICA POLÍTICA DA CONSTELAÇÃO PÓS-NACIONAL: surgimento da esfera pública é inseparável do processo de constituição dos Estados-nação e da formação das comunidades nacionais como um público integrado. A esfera pública constitui a arena viva e dinâmica na qual o permanente processo de construção, desconstrução e reconstrução discursiva e simbólica da nação tem lugar. Também no âmbito nacional, se radicam as bases da cidadania moderna como o conjunto de direitos e deveres cabíveis àqueles que fazem parte da nação.

7. Habermas: projeto de integração nacional de vasto alcance, principal desafio político colocado pela globalização diz respeito à soberania popular, que envolve a possibilidade de uma comunidade política decidir autonomamente as regras que devem regular a vida comum. A soberania popular é apresentada como experiência histórica, realizada no âmbito do Estado-nação europeu do pós-guerra. Habermas destaca que o processo de globalização obliterou as bases de sustentação do Estado democrático europeu: intensificação dos processos sociais transnacionais (governos não garantem mais a implementação das metas estabelecidas pelas comunidades políticas nacionais) e aceleração dos movimentos migratórios e construção de novas diferenças culturais (ampliaram o leque das formas de vida existentes).

8. Existe necessidade de (I) novas formas de integração social que restabeleçam os laços de solidariedade e a coesão social pré-existentes, (II) novas formas de acomodação social compatíveis com a vertiginosa ampliação de horizontes pessoais e sociais proporcionada pela globalização, (III) novas possibilidades de reconstituição dos laços de integração e solidariedade social que, extrapolando as fronteiras nacionais, correspondem à dinâmica econômica transnacional existente.

9. Trata-se de definir a fonte geradora de integração em torno da qual se dará a reacomodação dos impulsos modernizantes da globalização. A expectativa de Habermas é que a experiência de formação nacional se estenda para os limites da Europa e se constitua como esfera pública continental alicerçada sobre os laços de pertença de todos os cidadãos a uma identidade coletiva européia e alimentada pela habilitação dos cidadãos para o multilinguismo e pela ação de organizações não governamentais, movimentos sociais, com os esforços orientados por um projeto político comum. No que se refere às possibilidades da democracia no âmbito mundial, Habermas destaca a ausência da dimensão ético-política necessária à constituição correspondente de uma identidade e comunidade globais. Pela ausência de uma cultura política comum, caberia o projeto de uma política interna mundial que permitiria a tematização e o tratamento das questões globais a partir de uma perspectiva pós-nacional. Assim, a legitimação dos procedimentos democráticos estaria relacionada com uma concepção deliberativa da política, com seu caráter democrático sendo garantido pela transparência e pela acessibilidade das decisões políticas e não pela possibilidade de intervenção direta nos processos decisórios.

10. Costa (2003) incorpora as críticas severas à constituição de uma esfera pública continental na medida em que não se encontram indícios, tendo em vista que a diversidade das origens dos habitantes da Europa contemporânea impede o recurso à história comum como fonte de constituição de uma identidade cultural efetivamente abrangente. O autor destaca que pesquisas empíricas vem mostrando que a integração social na Europa, ao invés de conduzir à formação de uma esfera pública continental, vem se dando sobre a base de uma multiplicidade de fóruns e instâncias formais e informais de caráter transnacional. O que se verifica é a existência de redes de atores sociais que se despreenderam de suas referências nacionais, o que não significa que a comunicação nacional tenha desaparecido, apenas se tornou mais um fator nessas redes.

11. Costa (2003) destaca as redes de movimentos coletivos que congregam ações de protesto articuladas continentalmente como um fator de integração social no âmbito europeu. O autor trata das múltiplas conexões e variadas formas de intercâmbio estabelecidas entre movimentos de mulheres, ambientalistas e anti-racistas das diferentes partes do continente. As novas redes não apresentam a mesma densidade organizacional dos movimentos sociais, funcionam mais propriamente como uma forma de coalizão discursiva com um eixo orientador comum, sem que se verifique o esforço de envolvimento direto de uma ampla base de participantes. O espectro muito amplo de ações torna mais difícil mobilizar e motivar os militantes, além de uma dificuldade em identificar o destinatário preciso do protesto.

12. A hipótese de Costa (2003) é que as novas formas de sociabilidade transnacional fora da Europa seguem, ainda que com menor intensidade, a dinâmica observada por Eder para o caso europeu. No cotidiano de turistas, imigrantes, empresários, adeptos de tendências estético-culturais, comunidade científicas e movimentos sociais, percebe-se a existência de encontros comunicativos e redes sistemáticas e duradouras de intercâmbio entre os grupos sociais e indivíduos de origens diversas. Estes contextos comunicativos não convergem para uma esfera pública transnacional, mas, com sua dinâmica descentralizada, promovem a integração societária para além das fronteiras nacionais.

13. Através das estruturas das esferas públicas nacionais, as questões tratadas nesses contextos comunicativos transnacionais dos movimentos sociais ganham repercussão, apresentando em cada país uma lógica nacional própria. Neste sentido, há uma troca de informações e experiências entre um conjunto reduzido de ativistas políticos que se incubem de fazer com que os temas discutidos com os colegas de diferentes países circulem nas respectivas esferas públicas nacionais. A forma de discussão desses temas apresenta uma dinâmica própria, definida por atores nacionais a partir de fatores como (I) nível de articulação dos atores sociais responsáveis pela difusão do tema; (II) grau de integração internacional da mídia nacional; (III) interesse do governo nacional em incorporar o tema em questão à sua agenda.

14. POLÍTICA E CULTURA NA CONSTELAÇÃO PÓS-NACIONAL: nos termos de uma teoria comunicativa do poder e da democracia, a articulação entre cultura e política (entre determinadas formas de vida e as concepções de justiça nelas assente que dá sentido e legitimidade à ação política dos atores da sociedade civil). As pretensões de validade das reivindicações das organizações da sociedade civil necessitam ser submetidas ao crivo da esfera pública. Estas organizações não possuem uma legitimidade imanente: é no contexto dos intercâmbios discursivos próprios ao processo de formação da opinião e da vontade que as organizações da sociedade civil podem colocar á prova a universalidade de seus argumentos, mostrando a relevância para o conjunto da sociedade de seus pleitos.

15. Costa (2003) considera que expressões como “cidadania cosmopolita”, “sociedade civil global” são equívocas, pois sugerem que a legitimidade da ação política das redes não governamentais transnacionais pode apoiar-se nos mesmos princípios de articulação feita pelas sociedades civis nacionais entre formas culturais de vida e princípios de justiça, de um lado, e de existência de uma esfera pública abrangente e acessível a todos os atores sociais.

16. Desta forma, Costa (2003) tenta mostrar onde se funde a legitimidade das ações transnacionais de movimentos sociais e organizações não governamentais. Ao invés da limitada idéia de Habermas, uma solução do autor é desvincular a dimensão política da dimensão cultural da sociedade civil, apostando na radicalização das virtudes proceduralistas do modelo comunicativo de democracia. Isso quer dizer que (I) se reconhece que o respeito aos direitos humanos ou a reivindicação por equidade étnica, de gênero têm um apelo universal indiscutível; (II) constata-se que a forma particular como se buscou fazer valer tais reivindicações em alguns países é necessariamente contingente e intransferível, ou seja, a mesma norma universal pode encontrar formas diversas e particulares de concretização cultural.

17. Não se trata de uma sociedade civil global, mas do apelo em estender para as diversas regiões o esforço de superação dos particularismos, preservando, na melhor das hipóteses, as particularidades dos contextos regionais diversos. Neste sentido, Costa (2003) torna possível construir a legitimidade da ação das organizações e movimentos sociais transnacionais no âmbito de uma teoria comunicativa da democracia sem recorrer a idéia de uma sociedade civil global.

REFERÊNCIA:
COSTA, Sérgio. As cores de Ercília. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2003 (Cap. 8).

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