segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Fichamento: "Mercados, Estado e oportunidade social" (Amartya Sen)

1. A fé não examinada de ontem se tornou uma heresia e a heresia de ontem é agora a nova superstição. O autor procura o “caminho do meio”, o não-extreminsmo. 

2. MERCADOS, LIBERDADE E TRABALHO: o argumento mais imediato em favor da liberdade de transações de mercado baseia-se na importância fundamental da própria liberdade. Na análise do desenvolvimento, o papel da ética empresarial elementar deve receber um reconhecimento. O desenvolvimento de mercados livres em geral e da livre procura de emprego em particular é um fato muito valorizado em estudos históricos, sendo que Sen (2000) ilustra a importância dessa liberdade com quatro exemplos: (I) as várias formas de sujeição de trabalhadores encontradas na Ásia e África; (II) o malogro do socialismo burocrático na Europa oriental e na União Soviética pela negação da liberdade com a exclusão de mercados em muitos setores; (III) o trabalho infantil (escravidão e adscrição de trabalhadores); (IV) liberdade das mulheres para procurar emprego fora de casa no Terceiro Mundo. O autor destaca que embora as transações sejam importantes, bem como o direito de participação econômica e as liberdades relacionadas ao mercado, não podemos perder de vista a complementaridade dessas liberdades com as liberdades provenientes da operação de outras instituições (não ligadas ao mercado).

3.MERCADO E EFICIÊNCIA: na avaliação do mecanismo de mercado é importante considerar as formas dos mercados e a natureza de circunstâncias factuais. Na ausência de imperfeições, os modelos clássicos de equilíbrio têm sido utilizados para demonstrar os méritos deste mecanismo na obtenção de eficiência econômica. Sen (2000) indaga se a eficiência desejada não poderia ser computada em função de liberdades individuais (liberdade para escolher cestas de mercadorias ou capacidades para realizar funcionamentos), e não de utilidades. Desta forma, a importância da liberdade substantiva deve ser julgada pelo número de opções que se tem com adequada sensibilidade para a atratividade das opções disponíveis. Neste sentido, dada a escolha sagaz por parte dos indivíduos, a eficiência em utilidades individuais tem de ser dependente da oferta aos indivíduos de oportunidades adequadas dentre as quais eles podem escolher. Com isso, a restrição de supor o comportamento auto-interessado pode ser removida se a preocupação principal for as liberdades substantivas que as pessoas desfrutam.

4. ACOPLAMENTO DE DESVANTAGENS E DESIGUALDADE DE LIBERDADES: o problema da desigualdade se magnífica quando a atenção é desviada da desigualdade de renda para a desigualdade na distribuição de liberdades substantivas e capacidades, principalmente devido à possibilidade de algum “acoplamento” de desigualdade de renda, de um lado, e vantagens desiguais na conversão de rendas em capacidades, de outro. A relação entre potencial para auferir renda e potencial para usar a renda é um conhecido fenômeno empírico nos estudos sobre a pobreza, mas Sen (2000) tenta considerar simultaneamente a eficiência por meio da liberdade do mecanismo de mercado, de um lado, e a gravidade dos problemas de desigualdade de liberdade, de outro. Neste sentido, o autor lida com os problemas da equidade, mas enfatiza que permanece necessário prestar atenção simultaneamente aos aspectos da eficiência e equidade do problema, pois a interferência motivada pela equidade no funcionamento do mecanismo de mercado pode enfraquecer as realizações de eficiência mesmo se promover a equidade. Na existência de um conflito, a necessidade de simultaneidade ao considerar dois aspectos conjuntamente seria importante para chegar às prioridades sociais globais, com atenção na eficiência e na equidade.

5. MERCADOS E GRUPOS DE INTERESSE: Adam Smith percebeu a necessidade de entender o funcionamento dos mercados como um antídoto contra os argumentos tradicionalmente usados pelos detentores dos interesses adquiridos contra dar à concorrência um papel adequado e, desta forma, contrapunha-se ao poder e eficácia da defesa de interesses arraigados, que representavam restrições “pré-capitalistas”, que ainda existem. Sen (2000) relaciona entre elas a proibição de alguns tipos de comércio interno ou troca internacional, a preservação de técnicas e métodos de produção antiquados em empresas possuídas e operadas pela “burguesia protegida”. Para o autor existe uma similaridade genérica entre a arrebatada defesa da restrição à concorrência e o florescimento de valores e hábitos de pensamento pré-capitalistas. É necessário atentar para o poder político dos grupos que obtém benefícios materiais substanciais com a restrição do comércio e da troca, identificando-se os interesses adquiridos envolvidos e observando a influência de “atividades visando à renda” implícitas no afastamento da concorrência. A influência política visando ao ganho econômico é um fenômeno muito real neste mundo em que vivemos. Neste sentido, o autor propõe discussões abertas neste campo, que considera ideal para discussão pública sobre as alegações e contra-alegações das diferentes partes, e no teste da democracia aberta o interesse público pode muito bem ter excelentes chances de vencer a ardorosa defesa de roda seleta dos interesses adquiridos.

6.NECESSIDADE DE EXAME CRÍTICO DO PAPEL DOS MERCADOS: o autor se baseia na preocupação de Adam Smith ao considerar a possibilidade de perda social na busca do ganho privado, cuja motivação é restrita.

7. NECESSIDADE DE UMA ABORDAGEM MÚLTIPLA: questão relacionada com a necessidade de equilibrar o papel do governo e de outras instituições políticas e sociais com o funcionamento dos mercados. Uma estrutura de desenvolvimento ampla envolve rejeitar uma visão compartimentada do processo de desenvolvimento em prol de uma abordagem integrada e multifacetada que vise a um processo simultâneo em diferentes frentes, incluindo instituições que se reforçam mutuamente. Sen (2000) destaca uma profunda complementaridade entre, de um lado, reduzir a atividade excessiva do Estado na administração de um “governo da licença” e, de outro, remover a atividade insuficiente do Estado na contínua negligência da educação elementar e outras oportunidades sociais. Desta forma, a combinação de uso extensivo dos mercados com o desenvolvimento de oportunidades sociais é parte de uma abordagem ainda mais amplas que enfatize liberdades de outros tipos.

8. INTERDEPENDÊNCIA E BENS PÚBLICOS: os limites do mecanismo de mercado, as questões de equidade e a necessidade de ir além das considerações sobre eficiência formam um contexto que requer uma suplementação do mecanismo de mercado com outras atividades institucionais. Alguns dos mais importantes elementos que contribuem para a capacidade humana podem ser difíceis de vender exclusivamente para uma pessoa de cada vez, pois são consumidos em conjunto, em especial os bens públicos, como a preservação ambiental, a epidemiologia e os serviços públicos de saúde. Sen (2000) destaca que a base racional do mecanismo de mercado está voltada para os bens privados e não para os bens públicos, sendo que, por isso, existem boas razões para o fornecimento de bens públicos, como defesa, policiamento e proteção ambiental. Também existem casos mistos, como na educação básica. Desta forma, considerações sobre a eficiência suplementam o argumento em favor da equidade quando se defende a assistência pública na provisão de educação básica, serviços de saúde e outros bens públicos ou semi-públicos.

9. PROVISÃO PÚBLICA E INCENTIVOS: existem contra-argumentos para gastos públicos, sendo que um deles é o ônus fiscal do dispêndio público, com o medo dos déficits orçamentários e da inflação.Outro problema é dos incentivos e efeitos que um sistema de custeio público pode produzir, desincentivando a iniciativa e distorcendo os esforços individuais. Dada a limitação dos recursos econômicos, existem escolhas fundamentais envolvidas na questão que não podem ser totalmente negligenciadas com base em algum princípio “social” pré-econômico, mas é preciso lidar com o problema do incentivo, pois o grau de custeio social que uma sociedade poderia fornecer deve depender em parte dos custos e incentivos.

10. INCENTIVOS, CAPACIDADES E FUNCIONAMENTOS: o enfoque sobre a privação de capacidades apresenta alguma vantagem para prevenir distorções de incentivo em comparação com o uso do baixo nível de renda como critério para as transferências e subsídios. A avaliação das capacidades tem de ser feita primordialmente com base na observação dos funcionamentos reais da pessoa. A elaboração e a execução de políticas públicas são, como a política, a arte do possível, sendo importante ter isso em mente ao combinar insights teóricos com interpretações realistas sobre a exeqüibilidade prática. Sem (2000) ressalta que com o enfoque informacional limitado aos funcionamentos se obtém uma medida mais instrutiva da privação do que podemos conseguir com base apenas em estatísticas de renda. Os problemas mais básicos de realizações de funcionamento permitem a observação direta e fornecem bases informacionais úteis para as políticas de combate às privações. Sen (2000) evidencia que o enfoque sobre funcionamentos e capacidades tende a reduzir as dificuldades de compatibilidade de incentivos porque (I) as pessoas podem em geral relutar em recusar educação, favorecer o agravamento de uma doença ou cultivar a subnutrição por motivos puramente táticos; (II) os fatores causais que fundamentam algumas privações funcionais podem ser muito mais profundos do que a privação de renda, e pode ser dificílimo ajustá-los por motivos puramente táticos; (III) os próprios beneficiários tendem a dar mais atenção a funcionamentos e capacidades realizados do que meramente ganhar mais dinheiro; (IV) o redirecionamento da atenção das baixas rendas pessoais para as deficiências de capacidade também contribui diretamente para o argumento em favor da maior ênfase na provisão pública direta de facilidades como serviços de saúde e programas educacionais. Assim, a característica de provisão direcionada para capacidades permite que se atinja mais facilmente o público-alvo, reduzindo a margem para distorções de incentivo.

11. DIRECIONAMENTO PARA UM PÚBLICO-ALVO E TESTE DE MEIOS: não elimina a necessidade de julgar a pobreza econômica dos potenciais beneficiários, pois a questão passa a ser a de saber como as provisões públicas devem ser distribuídas, além do problema de cobrar pelos serviços públicos segundo o potencial para pagar por eles. A provisão de serviços públicos tem se direcionado para o teste de meios, expediente que reduz o ônus fiscal, com o mesmo montante de fundos públicos sendo usado de forma mais abrangente na assistência aos economicamente necessitados se for possível fazer os relativamente mais abastados pagarem pelos benefícios que recebem. Sen (2000) distingue entre dois problemas de incentivo na provisão de serviços de saúde ou educação com base no teste de meios, relacionados às informações sobre (I) a deficiência de capacidades de uma pessoa (quando o custeio social é feito com base no diagnóstico direto de uma necessidade específica a possibilidade de distorção é mais reduzida do que quando é fornecido gratuitamente na forma de serviços específicos e intransferíveis); e (II) as condições econômicas dessa pessoa, com o problema adicional de apurar as condições econômicas. Pelo fato de serem os potenciais beneficiários também agentes da ação, “visar um público-alvo” é menos simples do que tendem supor alguns defensores do teste dos meios. Entre as possíveis distorções resultantes de tentativas de direcionamento ambíguo das políticas, Sen (2000) relaciona: (a) distorção de informação; (b) distorção de incentivo; (c) desutilidade e estigma; (d) custos administrativos, perda invasiva e corrupção; (e) sustentabilidade política e qualidade. Com isso, o autor observa que existem considerações que contrariam o simples argumento em favor do direcionamento máximo, já que se trata apenas de uma tentativa, e não um resultado.

12. CONDIÇÃO DE AGENTE E BASE INFORMACIONAL: necessidade de encontrar soluções conciliatórias, sendo sensível às circunstâncias envolvidas (natureza dos serviços públicos a ser oferecidos e características das sociedades à qual eles serão oferecidos). Estas questões envolvem a importância da condição de agente e o enfoque informacional sobre a privação de capacidades.

13. PRUDÊNCIA FINANCEIRA E NECESSIDADE DE INTEGRAÇÃO: o problema é quais poderiam ser os efeitos do excesso de dispêndio financeiro.O argumento em favor do comedimento financeiro fundamenta-se no reconhecimento de que a estabilidade de preços é importante e que ela pode ser seriamente ameaçada pela complacência e irresponsabilidade fiscal. O verdadeiro problema reside no fato de que a inflação é um processo inerentemente persistente e o grau de persistência tende a aumentar com a taxa de inflação. A lição é ter em mente os custos prováveis de tolerar a inflação em comparação com os custos de reduzi-la ou eliminá-la por completo. O problema crítico é evitar a “instabilidade dinâmica” que mesmo a aparentemente estável inflação crônica tende a apresentar, se estiver acima de um nível baixo. Sen (2000) destaca a necessidade de distinção entre o radicalismo antidéficit e o genuíno comedimento financeiro. Desta forma, as demandas por comedimento financeiro devem ser interpretadas à luz dos objetivos globais da política pública. O papel do dispêndio público na geração e garantia de muitas capacidades básicas requer atenção, devendo ser considerado juntamente com a necessidade instrumental de estabilidade macroeconômica, que deve ser avaliada dentro de uma ampla estrutura de objetivos sociais.

14. OBSERVAÇÕES FINAIS: o autor considera que os indivíduos vivem e atuam em um mundo de instituições, que precisam ser consideradas conjuntamente para se ver o que elas podem ou não podem fazer em combinação com outras instituições em uma perspectiva integrada. Neste sentido, o mecanismo de mercado é um sistema básico pelo qual as pessoas podem interagir e dedicar-se a atividades mutuamente vantajosas. Seus problemas incluem despreparo para usar as transações de mercado, o ocultamento não coibido de informações ou uso não regulamentado de atividades que permitem aos poderosos tirar proveito de sua vantagem assimétrica. Lidar com esses problemas não significa suprimir os mercados, mas permitir que eles funcionem melhor, com maior equidade e suplementação adequada. Com isso, as realizações globais do mercado dependem intensamente das disposições políticas e sociais. O autor destaca que o mecanismo de mercado obteve grande êxito em condições nas quais as oportunidades que ele oferecia puderam ser razoavelmente compartilhadas. Para tal, a provisão de educação básica, a presença de assistência médica elementar, a disponibilidade de recursos (terra) que podem ser cruciais para algumas atividades econômicas (agricultura) pedem políticas públicas apropriadas. A questão da complementaridade se torna fundamental na medida em que não se pode duvidar das contribuições do mecanismo de mercado para a eficiência, mas esses resultados de eficiência não podem, sozinhos, garantir a equidade distributiva. Desta forma, os abrangentes poderes do mecanismo de mercado têm de ser suplementados com a criação de oportunidades sociais básicas para a equidade e a justiça social. Sen (2000) destaca que o verdadeiro problema não é a necessidade de comedimento financeiro, mas a crença subjacente de que o desenvolvimento humano é realmente um tipo de luxo que só países mais ricos tem condições para bancar, quando o desenvolvimento humano é sobretudo um aliado dos pobres e não dos ricos e abastados. A criação de oportunidades sociais e a expansão dos serviços de saúde, educação, seguridade social contribuem para a expansão das capacidades humanas e da qualidade de vida. As recompensas do desenvolvimento humano vão além da melhora direta da qualidade de vida, incluindo sua influência sobre as habilidades produtivas das pessoas e, portanto, sobre o crescimento econômico em uma base amplamente compartilhada.

REFERÊNCIA:
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade, S. Paulo: Cia. das Letras, 2000 (Cap. V)


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