sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Fichamento: "Processos de formação de Estados e construção de nações" (Norbert Elias), escrito entre 1970 e 1972

1. No desenvolvimento da sociologia como disciplina relativamente autônoma, houve uma substituição da perspectiva de longa duração, predominante do século XIX até a primeira metade do século XX, por uma visão de curto prazo na segunda metade do século XX. Com isso, Elias (2006) entende uma redução ao “aqui e agora” como um estreitamento de foco, que se expressa na mudança das teorias sociológicas dominantes, com o abandono da noção de desenvolvimento social presente das “dinâmicas de longo prazo” em benefício da idéia de sistema e conceitos como “estrutura” e “função” de “estáticas de curto prazo”. Desta forma, as mudanças passam a ser encaradas como ocorrências históricas, não-estruturadas.

2. O retorno da questão do desenvolvimento das sociedades no longo prazo parece associado a uma maior disponibilidade de dados, mesmo com a dificuldade de se construir modelos teóricos integradores. Neste sentido, uma multiplicação de estudos empíricos sobre o desenvolvimento das sociedades mais pobres não encontrava correspondência no campo teórico. Desta forma, a perspectiva dos países ricos podia ser notada pelos conceitos de “países subdesenvolvidos” ou “em desenvolvimento”. Deste modo, os países desenvolvidos aparecem como uma “etapa sem futuro” e, na medida em que não atribuem valor ao desenvolvimento de suas sociedades, desaparece o interesse pelo processo que os levou ao presente e a “história” passa a se constituir como uma preocupação marginal do sociólogo.


3. Entre os motivos para essa substituição de teorias, Elias (2006) enfatiza o tratamento de “estágio final imutável” que os modelos sociológicos conferiam às condições das sociedades “avançadas”. Desta maneira, as estáticas de curto prazo abstraem certos aspectos destas sociedades, que são tomados como leis que podem ser aplicadas globalmente. Com isso, estes modelos reduzem processos de mudanças estruturadas e direcionadas de longa duração a um estado imutável, uma condição permanente, ou seja, um fluxo não-estruturado, a história.

4. Elias (2006) procura tratar das teorias sociológicas do desenvolvimento de longa duração, enumerando alguns problemas da construção de nações européias como a etapa mais recente de uma longa série de estágios sucessivos, baseado na sua teoria dos processos de formação de Estado. Este tema se relaciona com uma mudança de perspectiva exigida pela passagem de um modelo sociológico estático para um paradigma dinâmico. Para isso, torna-se necessário adotar um paradigma teórico que não abstraia o curso do tempo e não reduza o que se observa como movimento contínuo a massas estáticas.

5. Abstrações da física X figurações espaciais e seqüências temporais de longa duração da biologia.
Esta questão fica clara na formulação estática “sistema social”, de Talcott Parsons, que coloca as ações como o átomo das sociedades humanas. Elias (2006) classifica esta formulação como uma generalização formal estéril e distanciada da pesquisa, pois são as pessoas que agem, ou seja, “as sociedades são redes de seres humanos” (p. 156). Neste sentido, o modelo de Parsons se afasta da aspereza da vida social dos homens quando posiciona a sociedade como um sistema altamente integrado que configura uma teoria geral aplicável a todas as sociedades humanas. Para Elias (2006), trata-se de uma generalização superampliada e idealizada, abstraída a partir dos Estados-nação modernos e projetada sobre o mundo inteiro com uma suposta unidade de valores e cultura. Nesta perspectiva, os Estados-nação não encontrariam lugar como um tipo específico de formação social, mas como uma abstração de conceitos como totalidade social, sociedade total ou sistema social que são selecionados, abstraídos e destilados a partir das sociedades mais altamente integradas de nosso tempo: os Estados-nação.

6. Elias (2006) procura relacionar o problema dos Estados-nação com a formulação descritiva e teleológica de sistema social. O modelo de Parsons supõe a manutenção de um sistema social unificado, equilibrado e em bom funcionamento como objetivo para o qual todos os eventos parciais se dirigem. Desta forma, a abstração se coloca a serviço de um ideal específico, com a teleologia substituindo a explicação. Elias (2006) procura estabelecer um modelo sociológico explicativo capaz de entender como e por que processos de integração no longo prazo de fato ocorreram e ocorrem, ou seja, como que, ao longo do tempo, “sistemas” relativamente grandes tornaram-se, e estão se tornando, mais altamente integrados, de modo que suas partes sejam interdependentes. Para perceber a continuidade do desenvolvimento das sociedades por meio de surtos de aproximação e afastamento se fez necessário que um conhecimento de longo prazo suficientemente amplo e intenso estivesse disponível (Estados dinásticos pequenos e pouco integrados no séculos XI e XII --> Estados dinásticos mais populosos e coesos --> Estados-nação industriais mais altamente integrados e interdependentes). Para Elias (2006), sem identificar este processo de longa duração não se dá conta do problema
.

7. A partir da recusa dos sociólogos em incluir processos de integração e desintegração de longo prazo na pesquisa sociológica, Elias (2006) entende o dilema entre duas escolas sociológicas diametralmente opostas: de um lado, colaboração, integração funcional e interdependência; de outro, tensão, fissão e conflito. Neste sentido, a pesquisa sobre a formação de Estados e construção de nações no longo prazo pode mostrar que “o movimento do sentido de uma interdependência funcional maior entre os grupos humanos engendra tensões estruturais, conflitos e disputas que podem ou não permanecer insolúveis” (p.159). Desta forma, dois tipos de integração se destacam e se relacionam estruturalmente: os processos de interconexão territorial ou regional e o aumento da interdependência entre os estratos sociais
.

8. Ernest Renan foi um dos poucos que se perguntaram “o que é uma nação?”, constatando que são novidades da segunda metade do século XVIII --> os Estados se fizeram “nacionais” em conexão com mudanças específicas na distribuição de poder entre governantes e governados, e entre os estratos sociais de suas sociedades. Estas mudanças afetaram a natureza da estratificação social, que é concebida, sob a influência da análise de Marx
, como uma passagem de corte absoluto da divisão clero-nobreza-povo para uma figuração baseada em classes, cujos membros são iguais perante a lei e desiguais em termos sociais e econômicos, tendo como marco a Revolução Francesa. Entretanto, Elias (2006) destaca que a passagem foi muito mais gradual, chamando atenção para o relevante papel que as classes altas tradicionais continuaram a desempenhar nas sociedades européias até o fim da Primeira Guerra Mundial. Além disso, o autor destaca que durante a maior parte do século XIX o conflito entre trabalhadores e capitalistas não era o principal eixo de tensão na Europa, e sim uma disputa permanente entre três vértices: (1) aristocracia rural associada às elites de corte, (2) classe média industrial ascendente e (3) a emergente classe operária.

9. O poder que as classes operárias reuniram lentamente pela sua organização contribuiu para aproximar os interesses agrários e industriais, resultando em alianças à ascensão de expoentes das classes médias industriais urbanas às posições de comando do Estado e o recuo gradual dos membros das velhas classes altas que preservaram o mínimo de sua cultura e de seus ideais. Na perspectiva de Parsons, as classes médias se integraram ao Estado, sendo “incluídas”. Elias (2006) destaca que a ascensão foi indício da transformação do próprio sistema, marcando um ponto de inflexão, que dispersou lentamente os vestígios da ordem dinástico-aristocrática e inaugurou a primeira etapa do Estado-nação. Neste sentido, a industrialização e a construção de nações podem ser consideradas duas faces da mesma transformação desde que ambos processos estejam relacionados a uma mudança mais geral na distribuição de oportunidades de poder na sociedade
. Para Elias (2006), a emergência de partidos de massa como instituições regulares é uma característica desta mudança.

10. Descontentamento generalizado com partidos que não garantem uma participação genuína dos grupos representados obscurece o problema sociológico básico à grande regularidade com que essas agremiações são formadas: instituições perenes. Elias (2006) considera os partidos como sintomas de um estágio de desenvolvimento das sociedades com maior integração da população do Estado, quando não é mais possível adotar medidas que dizem respeito às vidas dos habitantes sem recorrer a canais regulares de comunicação entre os tomadores de decisão e os que são afetados por elas. Desta forma, a reciprocidade da dependência entre governo e governados, ainda inconstante e desigual, tornou-se menos errática do que costumava ser
.

11. “As sociedades se fazem nações quando a interdependência funcional entre suas regiões e seus estratos sociais, bem como entre seus níveis hierárquicos de autoridade e subordinação, torna-se suficientemente grande e recíproca para que nenhum desses grupos possa desconsiderar completamente o que os outros pensam, sentem ou desejam” (Elias, 2006:163
). Neste sentido, mesmo os Estados-nação industriais contemporâneos mais avançados encontram-se nos primeiros estágios desses processos. Elias (2006) enfatiza que as conexões estão por toda a parte, mas é preciso ter uma perspectiva de longo prazo, além de concentrar atenção nas relações de poder mutantes entre diferentes grupos sociais.

12. Elias (2006) destaca a impressão que as pessoas têm de que suas nações existem, imutáveis em essência, há muitos séculos ou desde sempre. Desta forma, a história ensinada reflete uma auto-imagem, pela qual a nação se representa de forma inalterável em suas características básicas através das eras. Neste sentido
, sociedades contemporâneas que ainda estão nos estágios iniciais da formação de Estados e da construção de nações já começam a criar “uma auto-imagem de si mesmas — uma imagem do passado com a qual as gerações presentes podem se identificar e que lhes dá um sentimento de orgulho da sua própria identidade nacional, além de servir como catalisador em um processo que geralmente inclui a integração de segmentos regionais díspares e de diferentes estratos sociais em torno de certos grupos centrais dominantes” (Elias, 2006:164). O autor destaca a necessidade de distinção entre as ideologias nacionais e o processo de integração e desintegração no longo prazo. Enquanto as primeiras levam uma nação a parecer um sistema social de grande valor, imutável e integrado, no curso do segundo observam-se disputas entre tendências centrífugas e centrípetas e entre grupos estabelecidos e outsiders, tensões típicas desses desenvolvimentos.

13. Elias (2006) enfatiza que a construção de nações pode dar vez a uma nova integração, em um nível pós-nacional mais elevado, cujo começo pode ver na Europa Ocidental e na Oriental, entre grupos de Estados árabes e com alguns Estados africanos. Para o autor, a pesquisa sobre os surtos contemporâneos de integração e desintegração pode lançar luz sobre movimentos passados das etapas anteriores do processo de formação de Estados e vice-versa. Para tal, Elias (2006) coloca o desafio de criar uma rede teórica integrada e unificada para as ciências sociais que supere as fronteiras e disputas atuais.


REFERÊNCIA:
ELIAS, Norbert. Escritos & ensaios 1: Estado, processo, opinião pública. (Org.
F.Neiburg e L.Waizbort), Rio de Janeiro: Jorge Zahar Eds., 2006 (Cap 5).

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